quinta-feira, 24 de maio de 2012

A dislexia das crianças e a dislexia dos que mandam

Santana Castilho *

1. O júri nacional de exames (JNE) recusou que a uma aluna de 14 anos fosse lido o enunciado do exame a que se submetia, obrigatoriamente. A aluna é disléxica. A leitura era prática seguida há anos. Aparentemente, a questão resume-se a saber se a um aluno disléxico devem ou não ser lidos os enunciados dos exames. O JNE diz que não. Os especialistas dizem que sim, pelo menos em casos determinados, dependendo da dificuldade do aluno. No caso em apreço, a escola da aluna recomendou a leitura. A terapeuta que a assiste também, aliás secundada pela respectiva direcção regional. Alega o JNE que os alunos disléxicos têm uma tolerância de 30 minutos relativamente ao tempo de duração das provas e são classificados segundo regras concebidas para que as suas limitações não se reflictam no resultado final. O JNE invoca uma generalização de abusos quanto a condições especiais, que se tornaram regra para alunos disléxicos. Da literatura disponível sobre a matéria inferem-se factos, a saber: a dislexia é uma limitação do foro neurológico, com diferentes graus de gravidade; uma dislexia moderada pode dispensar a leitura do enunciado dos exames, mas uma dislexia severa não; assim, alguns disléxicos podem cognitivamente dominar um saber e prová-lo se interrogados oralmente, embora não consigam entender ou sequer ler a pergunta, se esta for formulada por escrito. Num exame de Matemática, por exemplo, mede-se um conhecimento específico que um aluno pode deter em grau máximo, apesar da sua dislexia severa. Mas não o conseguirá provar se as questões estiverem escritas. Num exame de Português, o mesmo aluno pode ter uma fina capacidade de interpretar um texto complexo que lhe seja lido. Mas não entenderá coisa alguma se for obrigado a lê-lo. Pode o Estado certificar proficiência em leitura a um aluno com uma dislexia severa? Não. Mas não pode deixar que a limitação do aluno se reflicta noutras áreas do conhecimento, somando à respeitável penalização da natureza humana com que aquele aluno nasceu, outra penalização, desta feita nada respeitável. Porque entre o tempo em que se fechavam em galinheiros crianças deficientes e hoje houve um percurso, embora a tónica esteja agora posta em retrocessos a que chamam progressos. Não é redundante, por isso, recordar a alguns disléxicos que mandam que estão para breve mais exames a que se submeterão mais alunos disléxicos, com níveis de conhecimento que nunca poderão demonstrar se os econometristas da moda persistirem em confundir velocidade com toucinho, uma recorrente dislexia política dos tempos que correm.

2. Passos Coelho e Miguel Relvas, que se saiba, não são disléxicos, por via neurológica. Mas dão sinais preocupantes de dislexia política. As afirmações do primeiro sobre a ventura feliz que o desemprego constitui, demonstraram uma profunda incapacidade de leitura do drama social dos portugueses desempregados. E a censura cínica que lhes dirigiu por preferirem ser assalariados a “empreendedores” (ele que, no curto tempo em que desempenhou alguma actividade produtiva se acolheu prudentemente ao Estado e a Ângelo Correia) mostra que não sabe, também, ler dados estatísticos. É que, se por um lado Portugal é o quarto país da OCDE que mais empresários tem, por outro, três quartos das empresas criadas ficam insolventes nos primeiros anos de actividade. Se esta dislexia for recuperável, perceberá um dia, tarde, que as causas do desastre, a que ele chama sorte, são outras. Começando por ele e pelo seu pensamento fundamentalista, socialmente darwinista.

Quanto ao homem do avental, ele que ousa dissertar sobre “jornalismo interpretativo”, acometido que parece de dislexia político/comunicacional (que generoso estou, não falando de pulsões chantagistas), avanço propostas terapêuticas para a interpretação do “texto”, que qualquer assessor lhe pode ler:

- Diga, em adenda à carta que dirigiu à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, se sim ou não ameaçou a jornalista Maria José Oliveira com a publicação de dados sobre a sua (dela) vida privada.

- Diga, do mesmo passo, como saneia uma aparente contradição, quando depois de garantir que conheceu o ex-espião Jorge Silva Carvalho depois de Março de 2010, referiu na Assembleia da República ter dele recebido um “clipping” reportando uma visita de Bush ocorrida … em 2007. Esclareça se era habitual Silva Carvalho fazer “remakes” do “Canal História”, via SMS.

Claro está que isto é retórica de escriba. De escriba que expôs ao ministro Relvas, acabado de empossar, uma estranha “dislexia”, que continua por tratar ou explicar. Ainda os casos Nuno Simas e Pedro Rosa Mendes vinham longe.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Fonte: Aventar

2 comentários:

  1. Sou um aluno de 12ºano a finalizar o curso de Ciências e Tecnologias na Escola Secundária de Nelas. Sou disléxico e no ano passado foi-me concedido o direito à leitura dos exames nacionais de fisico-quimica e biologia e geologia. Qual não é o meu espanto quando, hoje, sou informado de que este ano me é recusada a leitura dos exames nacionais de português e matemática. Ter dislexia não é uma opção minha. A disléxia é um um distúrbio genético e neurobiológico de funcionamento do cérebro para todo processamento linguístico relacionado com a leitura e, como tal, é imprescindivel a leitura das provas que, só por acaso, vão decidir a minha vida académica. É frustrante e desconcertante o que o JNE fez comigo e com a rapariga do 9ºano. Será assim tão dificil entender que se eu ler a questão pouco ou nada entendo, mas se a questão me for lida eu compreendo perfeitamente? Este direito à leitura dos Exames Nacionais também trouxe consigo os deveres de ir a aulas e apoios extra nos meus tempos livres. Além da excessiva carga horária ainda fiz os possíveis para comparecer às aulas com a professora de educação especial para melhorar as minhas capacidades. Neste caso não posso contestar, não posso reclamar e muito menos pedir reavaliação. O exame é dentro de dias e eu simplesmente tenho de me resignar às condições que me são, agora, impostas. Pelo trabalho, pelo emprenho, pela dedicação e pelo grande esforço para chegar ao fim do 12ºano, mesmo com dislexia profunda, merecia que me concedecem aquilo a que tenho direito. Mas cada vez mais venho a verificar que a educação é só para alguns.

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  2. Olá António,

    O teu desabafo é perfeitamente compreensível por mim, que tal como a tua professora de Educação Especial também batalho com os meus alunos disléxicos, são horas e horas a tentar colmatar dificuldades que nunca vão desaparecer! O que o JNE pede é quase como que pedir a "um cego para ler e interpretar um texto", revelando assim assim um "total alheamento” em relação às características e necessidades dos portadores desta dificuldade de aprendizagem. Mais do que isso são as implicações a nível emocional que a pressão desta situação vos pode causar.

    Força António, conta a tua história, dá a tua opinião, manifesta as tuas dificuldades. Eu como professora vou sempre fazer o que me for possível para que o Ministério da Educação vos entenda...

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