quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O primeiro autista português

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É junto à porta envidraçada da casa onde vive, no Vale de Santarém, que passa largas horas a observar o que acontece do lado de lá. De pé, sereno e concentrado, parece indiferente à presença de estranhos no pátio. E é só quando ouve o seu nome que quebra o silêncio e repete «Luís!» em jeito de confirmação, antes de voltar, como se nada fosse, ao que estava a fazer.
Luís de Almeida Gonçalves, hoje com 51 anos, foi o primeiro autista diagnosticado em Portugal. Os pais - a mãe, psiquiatra, o pai, dermatologista - começaram a estranhar o comportamento do filho quando, cerca dos 2 anos, o menino deixou de falar, ao mesmo tempo que ficava cada vez mais agitado. «A dado momento, ele ficou pura e simplesmente mudo e num estado de instabilidade e de mal-estar atroz», recorda o pai, José Carlos de Almeida Gonçalves. O primeiro passo do casal foi sondar, junto de colegas, o que poderia estar a acontecer com o Luís. De pouco lhes valeu a tentativa. Vinte anos tinham passado desde que o psiquiatra austríaco Leo Kanner publicara o primeiro artigo científico sobre autismo infantil, mas em Portugal nada se sabia ainda acerca desta perturbação global do desenvolvimento. «Diziam-me coisas como "a criança não tem nada, é um pouco nervosa só. Vocês, pais, é que estão doentes, não é a criança".» Alguns médicos quiseram mesmo submeter o casal Almeida Gonçalves a sessões de psicanálise para «curar» a criança. Ainda hoje, José Carlos carrega no tom crítico quando relembra os tempos em que o diagnóstico certo tardava a chegar.

Profundamente decepcionado com os pedopsiquiatras que consultou e perante o «bloqueio emocional» em que a mulher acabou por mergulhar, José Carlos decidiu procurar, por conta própria, as respostas que lhe permitiriam perceber o que se passava com o filho.
«Quando o Luís fez 3 anos, o descalabro já era enorme lá em casa. Não se podia sequer ter uma toalha na mesa que ele passava e arrancava-a. As paredes estavam todas destruídas pelos calcanhares dos sapatos. O mal-estar era tremendo», conta José Carlos, que à época vivia com a mulher e os dois filhos em Lisboa.


Diagnóstico difícil
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Ainda sem saber o que este conjunto de sintomas poderia representar ao certo, José Carlos de Almeida Gonçalves conheceu Evelina Bustorff, uma psicóloga e investigadora reformada que se mostrou interessada em fazer algum tipo de trabalho com Luís. «Ela tinha vivido na Alemanha, tinha trabalhado nos kindergarten que, entre outras coisas, também ensinavam a lidar com pessoas deficientes. Assim, comecei a deixar o Luís com a Evelina. Ela fazia jogos com ele e ele começou a interessar-se e a acalmar», conta.
Um desses jogos era um loto caseiro, construído especialmente para o menino. Primeiro tinha apenas imagens - uma maçã, uma pêra, uma moto - que Luís teria de colocar no lugar certo. Depois, às imagens Evelina juntou palavras. E quando a criança já estava familiarizada com as letras, retirou os desenhos e deixou apenas as palavras. Na altura, o resultado foi surpreendente: «Ele, que tinha estado dois ou três anos sem emitir sons, começou a repetir a primeira sílaba de cada palavra do loto!», recorda com entusiasmo José Carlos. Os jogos repetitivos, sabemos hoje, cativam muito os autistas e podem mesmo estimular pequenas grandes vitórias como esta.

Os progressos eram notáveis, mas ninguém conseguia dizer ainda ao certo o que afligia o pequeno Luís de Almeida Gonçalves. «Eu continuava a procurar opiniões e pessoas e ninguém me dizia nada. Então disse para mim: "Eu tenho de descobrir o que é isto".» E José Carlos assim fez. Dermatologista de formação, começou a dedicar-se à investigação em psicologia e psiquiatria infantil até dar de caras com o que procurava. «Nessa altura eu tinha contacto com uma livraria médica inglesa. Então fui ao catálogo e encontrei um livro sobre "a criança que não fala"», recorda. O mutismo era, de facto, um dos sintomas mais claros que o filho evidenciava, por isso decidiu encomendar o livro que reunia informação científica sobre as várias síndromes que poderiam levar uma criança a deixar de falar. «A certa altura eu leio uma coisa sobre a qual nunca tinha ouvido falar: autismo infantil precoce. Li a descrição e a minha reacção foi: "Ah! É isto!"»

Nessa tarde, em vez de tocar à campainha de Evelina Bustorff para que Luís descesse, como sempre fazia, José Carlos fez questão de subir as escadas e de partilhar com a psicóloga o que acabava de descobrir. «Eu já sei o que o Luís tem!», exclamou. E, para sua surpresa, Evelina respondeu: «Eu também!» A médica tinha contactado um colega alemão a quem descreveu os sintomas que Luís apresentava e o clínico dissera-lhe que só poderia tratar-se de uma «criança psicótica de tipo autista».

A primeira escola para autistas
Passam décadas sobre o acontecimento que marcaria para sempre a vida dos Almeida Gonçalves, mas nem assim o pai de Luís consegue esconder uma réstia de amargura pela forma como o diagnóstico chegou. «Duas pessoas souberam ao mesmo tempo aquilo que os psiquiatras não foram capazes de saber, vinte anos depois de se ter descoberto a síndrome», faz questão de sublinhar.
Fosse como fosse, não havia tempo para ressentimentos. Agora que já se sabia o que Luís tinha, havia que aprofundar conhecimentos, descobrir terapias e tentar ajudar outros pais que também tivessem filhos autistas. José Carlos começou por pedir orientação à britânica National Autistic Society, onde trabalhava uma das maiores referências nos estudos sobre o autismo, a psiquiatra Lorna Wing. «Durante um ano estudei centenas de artigos sobre o assunto. E pensei logo em fundar também uma sociedade, mas não o quis fazer sem antes ter uma preparação teórica muito boa», recorda o homem que uns anos mais tarde viria mesmo a ser um dos fundadores da primeira associação portuguesa dedicada a apoiar autistas e suas famílias, a APPDA, hoje com mais de uma dezena de delegações por todo o país.
Luís tinha já 12 anos quando os pais, juntamente com outras seis famílias, abriram a primeira escola para autistas, instalada numa pequena casa térrea com quintal na Rua Azedo Gneco, em Campo de Ourique, em Lisboa. 
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Um dia-a-dia rotineiro
De molho de chaves ao peito, é a Dona Graça que assoma ao portão da quinta. «Temos de ter as coisas todas fechadas - armários e despensas onde guardamos os alimentos - porque senão o Luís come tudo», justifica-se. Graça casou com José de Almeida Gonçalves depois de o médico ter ficado viúvo. Desde então, tem sido um dos pilares fortes na vida de Luís, que criou com ela uma intensa relação de proximidade, caso raro entre os autistas, que tantas dificuldades têm em socializar e partilhar afectos. «O Luís está sempre muito dependente de uma pessoa. Agora anda sempre atrás da Graça, não a deixa ir a parte nenhuma! Quando, há dias, ela teve de ir a Lisboa e por isso às oito da noite ainda não estava em casa, o Luís entrou em pânico!», exemplifica José Carlos. 
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Frequentar o colégio é, assim, a actividade que marca e define o quotidiano de Luís. É lá que aprende música, ginástica, informática, língua portuguesa, que faz tapetes de Arraiolos. Em casa as ocupações são outras e não se misturam com as da escola. «O que faz num sítio não faz noutro. Como toca piano no colégio, aqui não quer tocar. Lá, dão-lhe lições de computador, mas no meu ele não mexe», explica José Carlos.
Quando chega da escola, Luís ajuda a empregada na cozinha com pequenas tarefas. «Não há uma batata cá em casa que não tenha sido descascada por ele!», revela o pai. «É ele que põe a loiça na máquina, primorosamente um prato de cada vez. E quando a loiça está lavada, é também ele que a arruma no armário da mesma maneira. Também põe a mesa, uma coisa de cada vez, rigorosamente na mesma posição e à mesma distância do rebordo da mesa. O Luís é a única pessoa arrumada cá de casa!», continua José Carlos, com uma boa disposição que a idade ainda não apagou.

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Estes comportamentos obsessivos fazem parte do dia-a-dia de quem lida com autistas, mas nem sempre é fácil saber quais os limites a impor. Só o bom senso e a experiência que os anos trazem conseguem ajudar nestes casos, e José Carlos sabe disso melhor do que ninguém: «Deixamo-lo fazer algumas coisas, outras não. Aqui há tempos o Luís inventou de ficar na casa de banho a vigiar-me e só saía quando eu ia deitar-me. Ora, ficar horas e horas na casa de banho não é saudável. Tivemos de contrariá-lo e com violência. Nessas alturas grita que não quer, mas não chora. Nunca chora.»
Aos 51 anos, Luís tem uma linguagem muito limitada - tenta fazer-se entender com o mínimo de palavras possível -, mas demonstra capacidades notáveis noutras áreas, outra das características associadas aos autistas. Escreve com pouquíssimos erros ortográficos e tem uma memória matemática fora do comum, que não se manifesta só no facto de conseguir decorar o número e posição de cada um dos pontos de um tapete de Arraiolos. 
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Os últimos anos têm sido uma surpresa para a família Almeida Gonçalves, já que revelaram um Luís cada vez mais autónomo, sociável e afectuoso, ainda que esta seja sempre uma autonomia relativa - longe de ser independência - e que os afectos se limitem aos familiares mais próximos.
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Os Almeida Gonçalves não são excepção. Com a naturalidade de quem sabe já ter vivido muitos anos, José Carlos fala abertamente no assunto: Luís poderá manter-se na casa do Vale de Santarém, entregue a um cuidador; ou então mudar-se para a quinta de familiares, onde poderia dedicar-se à agricultura. Passar a viver numa instituição é a hipótese que menos lhe agrada, muito embora saiba que esta é, em muitos outros casos, a única viável. Seja como for, importa-lhe sobretudo que o filho mantenha as rotinas e que lhe seja garantido o acompanhamento e todos os cuidados de que precisa.

Sempre que pode, Luís, o primeiro autista identificado em Portugal, regressa à porta envidraçada. Entretido a olhar a rua, nem suspeita de que, na sala ao lado, se conta a história que despertou o país para as questões do autismo. A sua história.

Fonte: DN

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